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Archive for fevereiro \28\+00:00 2010

O homem Severo

 billvaz.files.wordpress.comSevero sempre foi um homem com a cabeça no lugar e os pés firmes no chão. Tinha o controle absoluto das suas contas, dos seus sentimentos e da sua vida. Um dia, a surpresa. Um abalo emocional atingiu 10 graus em sua escala Richter. Sem saber como, meteu os pés pelas mãos. O coração estava  sempre na garganta. Um nó na boca do estômago. Um frio constante na espinha. Não digeria muito bem o que acontecia dentro e fora de si. Olhos turvos. Ouvidos moucos. O homem alto sentia-se pequeno, muito pequeno. A solução foi reaprender a viver. Descobriu que podia falar com os olhos, a ouvir com o coração. A respiração tranquila virou o melhor alimento. E já que tudo estava mesmo de cabeça para baixo, plantar uma bananeira melhorava a visão. Um dia, como tudo sempre passa, a crise também passou: era hora de juntar os pedaços e reconstruir a própria vida. Mas Severo não achou muito ruim. Já não queria colocar tudo no lugar, pois o mosaico recém-descoberto de si mesmo parecia bem mais interessante. Apenas seguiu vivendo de um “novo-mesmo” jeito.  E se as pessoas o olhassem de um jeito meio estranho, ele não ligava. Estranho era deixar engessado um corpo articulado, flexível, adaptável, sempre disposto a descobrir um novo jeito de ser.

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Onde estavam?

Eles se perderam e não se lembravam exatamente onde. Apenas haviam se esquecido em um lugar qualquer. Num canto da casa, em uma conversa animada de um bar, nas ruas de significados que eles edificaram. Veio a noite, veio o dia, veio a angústia. A dificuldade de se olharem, de se tocarem, de conviverem. Não eram mais cúmplices, não eram mais companheiros. E já que esta convivência com o outro estava envolta em tantas farpas, coube a cada um  cuidar de sua individualidade, dos seus  questionamentos, dos pequenos cuidados. Até que chegou a hora do novo encontro e eles estiveram um diante do outro novamente. Já não eram mais os mesmos. Sem dores. Com os olhos brilhando, eles se reconheceram.

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Migué

Ser batizado com nome de anjo só pode ser um prenúncio de coisas boas. Miguel é um anjo clássico, ou arcanjo, chefe dos exércitos celestiais. Só que o Miguel dessa história nasceu no interior de Minas e por isso já nasceu Migué. Um Migué como tantos outros na região que acorda cedo, capina a roça e encara a lida sem medo, o manejo do gado, o feitio caprichoso dos queijos, arredondados com o sabugo de ‘mio’. No final do dia, quando o suor é lavado com água e sabão de barra, Migué voltava pro seu canto e pra suas modas. Sua viola caipira era mais xonada que qualquer outra harpa que se pudesse imaginar e, ao seu som, meninas dançavam com flores nos cabelos. Migué tinha tudo e de nada reclamava. Mas tinha um sonho, um sonho daqueles bem finos, que a gente embrulha com papel celofane e guarda no lugar mais aconchegado da alma. O sonho de ler ou pelo menos escrever o seu nome de anjo. Nunca se perguntou se foi a escola que chegou atrasada ou se sua infância passou muito ligeiro. Mas quando começou a primeira aula na região, ele não era mais criança e precisava ganhar a vida. E ganhou mesmo. Ganhou setenta e cinco anos de luta honesta e batalhadora, criou família, criou seu gado, trilhou o seu destino sem olhar muito pra trás. E ganhou vida nova quando seu destino cruzou com o da professorinha Luzia que, ao mudar-se para o povoado, abraçou a alfabetização dos adultos. E assim como o seu xará Miguel, que tem o nome grafado na Bíblia, o nosso Migué também conseguiu escrever o seu na história daquela comunidade rural.  

imagem retirada de artistamuvek.blogspot.com

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Cheiro de festa

Bolo de aniversário, todo glaçado. Bolo com coco por cima. Bolo de chocolate com brigadeiro. Bolo com recheio de doce de leite. Bolo de cenoura com cobertura de chocolate. Bolo de laranja com calda caramelada. Bolo de limão com creme. Bolo de fubá. Um bolo. Bem fofo. Com uma vela acesa e um desejo tremulando, depois dos parabéns, do hippies e dos hurrahs. O problema é que assim, na hora, nem sempre se tem um desejo pronto na ponta da língua ou em ponto de pensamento. Nestas horas, não se acanhe. Apenas receba os parabéns e deixe que todos te ajudem a assoprar as velinhas. E agradeça aquele momento porque, no bolo confeitado, nos amigos reunidos e nos abraços multiplicados já existe a marca de um desejo realizado.

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Pausa para um café

Sentaram-se para um café, embora o café fosse apenas um motivo para se encontrarem. Ele puxou a cadeira, cavalheiro, e pediu a bebida. Ela pediu um beijo. Descanso terno: o calor vinha das mãos, não das xícaras e espalhava-se pela face de ambos. Não deveriam se demorar, era apenas um café. Mas que demora existe quando se tem todo o tempo do mundo? Estão lá, agora, assim como estiveram ontem e estarão amanhã, bebericando a cumplicidade de quem nasceu para ser a companhia de alguém.

Imagem de Jana Magalhães

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Dente de leão

Homem de poucas palavras e lágrimas menos ainda. Não chorava por motivo algum. Bem que tentava, fungava o nariz, levava o lenço no canto do olho, como se o gesto pudesse trazer consigo o ato. Nada. Nem um respingo. Por vezes, o excesso de pimenta trazia-lhe um marejar forçado que emoções maiores não conseguiam. Ou um cisco, uma gripe, um colírio. Mas choro que é bom, nem uma gota. Seguiu assim a sua vida, até aquele dia, quando viu um gramado cheio de  florzinhas miúdas, os famosos dentes de leão. Grande feito, já devia ter visto maços delas pelo caminho e produzido sentido algum. Mas aquele dia estava mais introspectivo que nunca. De repente, achou engraçado o nome. Como uma flor tão frágil carregava a mesma denominação da estrutura óssea daquele que, nada mais era, que o rei dos animais? Que paradoxo! Parou um pouco e ficou ali pensando. Um pensamento trouxe outro, que trouxe outro. Pensou na própria existência, reflexão mais profunda. O que é a vida senão um eterno arrancar de dentes dos leões que, assim como nós, envelhecem banguelos e frágeis? Pensou no passar dos anos, em sua densa história. Naquele instante, chorou. Chorou como nunca havia conseguido em uma vida inteira. Chorou amparado pela própria fragilidade, pelo medo da velhice, pela profunda solidão. Primeiro, lágrimas solteiras, depois, um choreiro de lavar calçadas. Nunca havia achado a vida muito justa, um caminho sem volta, perdas acumuladas, peso nas costas, muitos deveres.  De repente, viu-se muito confuso para seguir adiante. Então, sentou-se à beira do caminho e deixou a vida passar um pouco. Até que o vento veio e secou as suas lágrimas. O mesmo vento que espalhou as flores pelo ar, que revirou o pó e que trouxe a aragem de um novo pensamento: os dentes eram mesmo arrancados ou somente se desprendiam? Idéia animadora essa! Veio chegando mansinha e se estabeleceu trazendo uma desconhecida sensação de paz. De repente, era bom estar naquele lugar, somente observando o campo. Ficou ali o tempo que foi preciso para se reerguer. Horas? Dias? Anos, talvez. Então levantou-se, colheu uma flor para si e soprou-a bem forte. Ela se desfez – ou se refez em mil pequenas partes? Chegou a dançar sozinho, sem medo de parecer ridículo. Dizem que saiu dali voando. E nunca mais se segurou, sempre que precisou desprender-se de algo.

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